sábado, 18 de junho de 2011

Insurreição


Dedico esta ecfrase aos meus amigos do Facebook
(amigos não apenas desta natureza, mas além )
que me fazem ouvir por horas a fio
Mahler, Mozart, Shubert, Brahms, Bach e muitos outros.


Ele está pronto para começar seu trabalho. Com a paleta de tintas em uma das mãos e o pincel na outra, parece disposto para colocar os primeiros traços de tinta na tela, ou talvez, para continuar algo que já tenha tomado corpo após dias e dias de esforço. No entanto, o seu olhar perdido no vazio à frente, denuncia que ainda falta alguma coisa. É possível que os modelos ainda não tenham chegado para que comece a pintar. Mas na sala já há pessoas, modelos em potencial para uma obra de tal porte. Sim, a tela é enorme. Nela é possível caber a representação de quase todo um reino.

Alheia ao pintor, a menina com ares de princesa ajeita seu vestido de seda com volumoso saiote. Está radiante. Irá refrescar-se em breve, degustando o saboroso suco oferecido por sua gentil ama. Outra serviçal, um pouco mais atrás, faz uma ligeira genuflexão. Ela deve se render às graças da menina, ainda que apenas por questões hierárquicas. À sua frente, uma anã, com vestido simples indicando sua condição inferior, sonha que pode tomar parte da próxima cena. Com ela uma garotinha, a menor de todas, faz carícias com um de seus pés em um cachorro, provavelmente um animal errante acolhido por ingenuidade do amor infantil. Atrás desse grupo há uma freira. Aparentemente, ela conversa com outra mulher, serviçal da família. É bem possível que esteja reclamando para a tal empregada o fato de ter que posar junto com a família para a pintura do retrato: uma freira não deve se curvar à luxúria e às aparências! Ou talvez apenas se justificasse perante seu ato, afinal, como poderia recusar tamanha honra de convite sendo a família de suma importância? Só faria elevar ainda mais a posição da Igreja na sociedade! Sabendo o que sei, fico com a segunda hipótese e volto ao pintor.

Elegantemente trajado, ele tem uma insígnia em forma de cruz no peito, certamente uma condecoração real. Não obstante seu traço ser belo e perfeitamente respeitoso a todos que retrata, seu espírito aristocrático vem de encontro ao que buscam seus mais nobres retratados: a soberba individualidade. Seus serviços prestados à corte decerto lhe permitiram chegar ao patamar supremo de figura respeitável e invejável entre os artistas. Em seu ateliê, de austera decoração, obviamente há quadros pendurados na parede. Todos seus. Entre eles, algumas cópias de grandes mestres inspiradores.

Um foco de luz se destaca na parede. É um espelho que reflete duas pessoas indistintas. Mas para o pintor não, elas são bem definidas porque ele as vê de frente, estão chegando. É evidente que já é hora de começar o trabalho. Em suas mãos possui todo o material necessário. No entanto, inexplicavelmente, ele se detém ainda por alguns instantes e olha demoradamente para cada pessoa que está ali, naquela sala, como se elas fossem personagens de uma importante história. Um pensamento estranho toma conta de sua mente. Uma nuvem cinzenta, massa perturbadora da qual nasce um desejo. O mais subversivo dos desejos. Numa total insanidade ele declara, em alto e bom som, que todos os presentes farão parte do retrato, inclusive ele e o cão vagabundo.

Não sei o que aconteceu depois disto. Suspeitando uma confusão e vendo ao fundo uma porta aberta saí correndo. Até atropelei um homem que descia as escadas. Ufa, os jardins do Prado!


As Meninas - Diego Velázquez, 1656
Museu do Prado (Madrid)


Nota: Para fazer jus ao nome deste blog devo explicar que esta ecfrase foi escrita numa Oficina de Literatura e Arte - relações entre imagem e palavra com a escritora Verônica Stigger. A ecfrase é uma representação verbal a partir de uma representação visual. Descrever este quadro com um certo devaneio foi um exercício prazeroso e muito interessante para mim. Foi uma aventura literária na qual aprendi um pouquinho mais sobre a arte da palavra. Ah, porque dediquei aos meus meus amigos do FB... Bem, durante este processo foi inspirador ouvir aqueles compositores que lotam suas páginas de perfil por lá!

2 comentários:

Regina Célia disse...

Perfeito, Vera! Conseguiu me levar para dentro da obra, sua descrição está impecável. Maravilhoso exercício, muito bem desenvolvido por vc.

Ver@cidade disse...

Obrigada Re, a proposta foi fazer uma descrição física e acrescentar algo ilusório, fictício, ou seja, um conto, mas a partir de uma descrição.